Jornal Aldrava Cultural
ISSN 151-9665
Crônicas

 

 

Natal e Ano Novo dos invisíveis
Andreia Donadon Leal

Feliz 2024. Quantas pessoas aguardam a virada do ano, fazendo retrospectivas, planejamentos, viagens, compras, mudanças; com mesa farta, árvores robustas de Natal, luzes multicoloridas, enfeites, guirlandas, família e amigos? Eu queria falar que início de ano é mágico, que início de ano traz bons presságios, mas o ponderável e o imponderável vivem num mesmo espectro. A virada do ano não será feliz para muita gente. Visitei algumas casas no afã de presentear famílias; o que vi não foi mesa farta de comida, nem árvores rodeadas de bolas e luzes. O que vi foi uma tristeza severa... E não há nada que me faça escrever um texto pomposo, publicável, politicamente correto, para a virada do ano, repleto de palavras fartas e voos poéticos. Se vejo sofrimento no outro, escrevo sofrimento. O sofrimento do outro não pode ser problema só do outro. Comovo-me com o sofrimento alheio. Fartura é coisa de poucos no mundo. Se não há fartura para todos, meus olhos se curvam à tristeza, e minhas palavras são cruas e brutas. A tristeza do outro me toca, me comove e me incomoda. A morte de uma família e socorristas em acidente de carro na véspera do Natal aperta meu coração. A morte por envenenamento da mãe e do filho dilacera meu dia. A jovem que cometeu suicídio por fake news e ódio destilado na rede social choca minhas esperanças. A rede social é ambiente virulento, de vale-tudo, de ódio destilado sem medida, de ascensão de monstruosidades. Quantos conteúdos são disseminados diariamente, com discurso de ódio, destruição, inveja, negacionismo e polarização? Quantas pessoas foram e serão vítimas de disseminação massiva de fake News, de ataques horrendos de "tribos" e de perfis fakes, que sentem prazer em destruir a vida dos outros? Regulamentar as mídias sociais é ameaçar a democracia? Tudo é permitido na vida? Regras constitucionais e infraconstitucionais regulam os direitos e os deveres do Estado e do cidadão, o exercício e o controle do poder, as garantias fundamentais... Quem define o que circula nas redes sociais? As cinco Big Techs que controlam o mercado digital? A máquina? Os algoritmos? E o exercício legítimo da liberdade de expressão? Sou livre para expressar pensamentos e opiniões sem limites? Quem define limites na rede social? Quem está do outro lado? Não sei. Vivo instantes prolongados de sustos. O ritmo 2x tem sacudido famílias; ceifado vidas em estradas esburacadas, ceifadas vidas em assaltos, brigas, acertos de contas, discursos de ódio... Esperanças quitadas numa mesa em que falta comida, em rostos sem esperança, em lutas constantes sem resultados, em batalhas perdidas... Hoje não tem rasantes e voos poéticos! O protagonista do texto é o sofrimento do outro, é o sofrimento de quem escreve, é o sofrimento de quem vê o resultado do ódio destilado na mídia, nas políticas públicas que vendem ilusões, enquanto não há comida para todos, não há educação de qualidade para todos, não há emprego e oportunidades para todos. Ruas iluminadas, propagandas coloridas, corais vestidos de papais noéis vendem Ano Novo em que sonhos serão realizados... Cabisbaixa e sem tempo para apreciar o propagandístico apelo decorativo, a desesperança bate à porta de 2024. Meu discurso resignado grita, esperançando em meu peito: que os invisíveis e os que sofrem o ano inteiro – entra ano, sai ano – sejam reconhecidos! Feliz 2024! (Postada em 21 de dezembro de 2023)

 

PERÍODO ELEITORAL

Andreia Donadon Leal

Já pensou em quem votar, cidadão? Assistiu a algum programa de partido político na televisão, nos comícios ou leu o release nos famosos “santinhos” jogados no terreiro de casa? Ou em outdoors nas beiras de estradas, nas beiras de ruas, nas beiras de terrenos baldios, nos muros, nos pára-choques e nos vidros de carros? Na entrada e na saída de qualquer cidade do país, Ele ou Ela estão lá, com um elegante sorriso no rosto. Parecem gente boa.

Estamos no famoso período eleitoral! Sejam bem-vindos à época de discursos inflamados, alfinetados, deprimentes, promissores, açucarados, chocantes, arrogantes, incompreensíveis, insatisfatórios, petulantes, indiscretos, chamativos, apelativos, enjoativos, enfadonhos, nervosos, com direito a sobremesa bem amarga nos debates na televisão: um português pastoso, azedo e quebrado. É isso mesmo caríssimo eleitor. Vozes quebradas que agridem os ouvidos. Já escutou pedaços de vidros sendo triturados por um liquidificador ou a rotação em alta velocidade de um disco de vinil arranhado? A Língua Portuguesa é difícil sim, repleta de curvas, de faixas contínuas, de declives, de aclives, de sinais verdes, amarelos e vermelhos que desrespeitados, poderão ocasionar acidente leve, moderado ou grave... O nível do acidente linguístico dependerá do tempo em que o candidato ficar se debatendo com o adversário ou respondendo às perguntas capciosas dos repórteres (não com os punhos cerrados, mas usando com eloquência e falso intelectualismo, a linguagem, dando algumas derrapadas em algumas frases) que às vezes, nos fazem rir para não chorar de vergonha, ou de desespero ou por falta de opção mesmo.

Pobre candidato que corre feito louco pelas metrópoles e cidades interioranas, buscando votos; muitos vão de helicópteros ou de jatinhos... Agendas lotadas! Pés inchados. Vozes roucas. Sono comprometido. O telefone não pára de tocar. Estômago “azedo” pelo excesso de cafeína. Sorriso constante no rosto, até na hora de dormir. Como um filme em projeção acelerada: ritmo alucinante e sem cortes... Vida dura; passagem de sangue, suor e lágrimas, na busca compulsiva pelo poder, sem deixar a energia se esmorecer. “É tudo o que eu quero: trabalhar pela educação, pela saúde, pelo meio ambiente, pelo saneamento básico, pelo trabalho, pelo progresso, pela vida, pelo povo, pelo POLVO também”! Pobre polvo que além de ser celebridade em sites, jornais e televisão na copa do mundo; vem como pano de fundo no brasão da República Federativa do Brasil. Depois de um ínfimo descanso e esquecimento, é relançado pela mídia sensacionalista. O que prevê o polvo desta vez? (?)

Hoje a manhã está cinzenta, não só pelo tempo, mas pela fumaça das queimadas nas matas. Não bastasse este cenário deprimente, um monte de papel jogado nas ruas complementa o caótico campo visual. Nesta hora: compreensão, serenidade e muita paciência, para conviver com o famoso período eleitoral. O poder agora está em nossas mãos. Vamos assistir a alguns programas de governo na televisão, avaliar a trajetória dos candidatos ou candidatas e pensar, pensar muito em quem votar. Eu sei que a vida é dura para a maioria dos brasileiros, e que precisamos de sonhos e de ilusões para continuar nossa caminhada, mas deixemos o sonho para outras ocasiões e vamos pensar na realidade nua e crua... Afinal, votamos para quê? Para eleger representantes dignos, competentes e comprometidos com o bem-estar do povo, da vida e do país.

Épocas

Andreia Donadon Leal

Há época de escutar pingos de chuva repicando no chão, de preferência na hora de dormir. O toque de gotas, dependendo do estado de espírito (que não sejam os temporais, as trombas d’águas...) lembram canções de dormir. Acordes de sinfonias para os ouvidos, vida para as plantas e plantações. Há época de brincar na porta de casa com os colegas de pique esconde, rouba-bandeira, peteca, bola, bicicleta. Há época em que até os irmãos adolescentes e parentes mais velhos se misturam com a molecada na rua para brincar.

Há época de outono – renovação de flores e acontecimentos; verão – céu tomado de azul, sol imperioso e paixões imprevistas; primavera – despontar e desabrochar de flores e plantas; e invernos esquentados com fogueiras, caldos, chocolates e canjicas nas barriquinhas das festas juninas. Há época de gincanas, festivais de música, da rainha da pipoca e do rei do amendoim e da garota da escola. Há época de acordar cedo, tomar banho, fazer o desjejum e vestir o uniforme do colégio. Há época de família completa: pai, mãe, irmãos e parentes em festas de aniversários, final de ano e almoços de domingo.

Há época de censuras, covardias, inseguranças, repressões, desempregos, pobrezas, falta de dinheiro e de oportunidades; de epidemias e de doenças escabrosas. Há época de descobertas importantes da ciência e da tecnologia. Há época em que a notícia de ontem vira história. A notícia dos acontecimentos vem em tempo recorde, de preferência alguma desgraça via satélite, para chamar e chocar a opinião pública: escândalos, violências, mortes, missões com finais trágicos e intervenções da polícia mal-sucedidas...

Há época para o primeiro beijo, para a primeira paixão, para a primeira noite de amor e para o primeiro desapontamento amoroso. Há época para o choro, para a dor de cotovelo e para a primeira fossa. Há época de amores não correspondidos, tristezas e incertezas...

Há época para viajar, colocar a mochila nas costas e o pé na estrada para conhecer outras plagas. Há época para a primeira formatura, para a primeira comunhão, para o primeiro casamento (talvez o único); para o primeiro filho, para os outros filhos ou filho algum; para os primeiros netos e para os casamentos que não deram certo, a primeira separação...

Há época também imprevisível pela mente humana, pelos orixás, pelos pais de santo e pelos paranormais. Época de incompreensão e não aceitação dos fatos inexoráveis da vida: a morte e a decrepitude do corpo. Época de revolta com as ações de alguns seres que não sabem conviver com outros seres humanos: pedofilia, estupro, covardia, assassinatos, roubos e corrupção.

Há época para agonias e para esperanças; para o início, para o meio e para o fim do ciclo e continuação por outras gerações que passarão por momentos previsíveis e imprevisíveis pela ciência (relembrando um trecho magistral da crônica “Júlio Verne” de Olavo Bilac – “... nós somos os espectros de outros homens, aquele velho que ali vem coberto de cabelos brancos, vai na escala das agonias e das esperanças, ser continuado e prolongado por aquele menino que passa por ele sem o ver, sem suspeitar que acaba de acotovelar a sua própria personalidade futura”...) Há época em que a nostalgia irromperá nossas lembranças e os nossos sonhos. Há época de constatar que fomos felizes e tristes em épocas distintas da vida.

Há época de paz, de guerra, de amor, de desamor, de justiça, de injustiça e de esperança. Há época em que saberemos que é contra-indicação da vida, desistir de continuar o caminho de cabeça erguida e pés seguindo às trilhas da estrada, desviando-se das curvas perigosas, das estradas escorregadias, mas sem fugir ou pular os obstáculos (não fuja deles, vença-os!).

Esquecimentos

Andreia Donadon Leal

Há remédios para esquecimentos súbitos? Esquecimentos banais, de apanhar a roupa no varal, deixando-as na tempestade; de conferir os documentos, principalmente a carteira de motorista e de repente ser abordado em uma blitz; de pagar o cartão de crédito, de abrir as correspondências e assim ser surpreendido ao fazer uma compra, pois seu nome foi incluído no SPC. Que “carão” na hora em que a vendedora, com um sorriso amarelo, fala:

- Seu cartão e seu cheque não foram aceitos. Tivemos que consultar o Serviço de Proteção ao Crédito e seu nome está constando em nossos dados. Sinto muito!

Esquecimentos reversíveis, mas mesmo assim, estressam nosso dia-a-dia; a correria desenfreada, o acúmulo de funções para dar conta do recado. Não há corpo e mente de ferros que suportam excessos: compromissos, agenda lotada, multiplicidade de afazeres. Até a máquina, se sobrecarregada, funciona mal, dá defeitos. Levantar cedo, acordar os filhos para a escola, preparar o desjejum, tirar o carro da garagem, deixar o filho mais velho no colégio, o outro em uma creche e ainda ter tempo de chegar pontualmente ao trabalho. Os minutos e os segundos têm que ser precisos e não podem ser modificados. O trajeto é contínuo e a mente está treinada para isso. Na hora do almoço: buscar os filhos, levá-los para a casa; almoçar, tudo milimetricamente cronometrado. E por aí vai; a rotina massacrante, fazendo-o correr no ritmo de atletas, com um diferencial, você não é um atleta. O corpo sente; a cabeça, às vezes, chega a uma carga de estresse tão grande que além dos esquecimentos banais, surgem alguns que jamais poderiam aparecer.

“Uma mãe esquece o filho na escola. Um pai esquece o filho em um carro”. Alguns esquecimentos viram tragédia e pesadelo. Essa semana a primeira notícia de um jornal televisivo: “hoje um bebê de seis meses morreu dentro de um carro. A mãe esqueceu-se de tirá-lo e só lembrou após cinco horas. Por quê? Por que mudou a rotina. Ao invés de deixar o filho mais velho por último no colégio e seguir para o trabalho como de costume, o trajeto foi invertido. O bebê morreu asfixiado e com queimaduras”... Esse não é um caso isolado no país. Não nos cabe julgar o esquecimento da mãe. Ela carregará essa dor lancinante para o resto de sua vida. O que podemos evitar é essa correria alucinante, brutal e sem paradas. Esquecimentos todo mundo tem e não cabe a ninguém atirar a primeira pedra. A multiplicidade de funções devido às necessidades financeiras e outras podem afetar nossas ações diárias, nos fazendo correr cada vez mais, ficar mais automatizados como robôs ou um GPS e esquecer-nos das adaptações de que foram feitas e pensadas ontem mesmo. Aí está o perigo, quando somos obrigados por uma fatalidade a ter que parar bruscamente a correria e a perceber que estávamos tão robotizados e cegos que nos esquecemos de apertar a tecla “modificar”, ir mais devagar, pois o mundo não vai cair em nossas cabeças, se caminharmos com mais cautela e atenção, quando nossa rotina sofre mudanças repentinas, quem sabe algum atraso no trabalho ou nos compromissos. Inadiável, a vida ou a morte?


Chão de Cimento Encerado

Andreia Donadon Leal

Sem contestações, destino... Virar poeira cósmica, lixo ou alimento de vermes. Incorruptível tropa de mortais. Os acordes sinfônicos que tocam nos ouvidos acariciam, o Réquiem k.626, mozartiano, para ninar a marcha fúnebre. Que melodia é esta? Ora lírica, ora austera... “Réquiem aeternam dona eis, Domine”. Descanso! Exigente ou simplesmente imbecil. Asseverações... Transparecer certo esgotamento de viver nem quatro décadas. O corpo brada: descanso. Exaustão triplicada com afazeres inúteis. Comer todo tempo... Sentir saudade da criança que andava descalça pelas ruas afora, arrastando o casco grosso que protegia a sola dos pés. Gargalhar com piadas sem graça. Sentir falta de si mesmo. Levantar da cama de solteiro, esticar o lençol, dobrar a coberta e colocá-la no guarda-roupa. Do cheiro de café passado na cozinha pequena de um pai com caneca cheia, mão esticada e sorriso tímido nos lábios. Pai é assim mesmo. Passa café todas as manhãs e tardes. Infeliz quem não tem a caneca repassada... Distante, longe e cansado. A saudade bate forte; rever a cena e sentir o cheiro... Sentir falta da casa desarrumada de manhãzinha. De vassoura na mão varrendo pacientemente os cômodos empoeirados e sujos com fios de cabelos embolados nos ciscos. Encher o balde de água com desinfetante e amaciante. Passar pano no chão de cimento grosso. Vez ou outra, vontade de chegar perto do pai e pedir um chão de madeira para encerar. Música estridente e incompreensível. Ora movimentar as ancas com a vassoura na mão ou fingir tocar guitarra. Bobagem, quanta bobagem! Mãe fala: passa cera vermelha no cimento que o chão ficará colorido e pare de dar este xouzinho patético. E era verdade mesmo. O chão da casa era vermelho encerado e escovado. Em casa de escovão sem uso, escondido no porão. Sentir saudade das brincadeiras dos irmãos ainda crianças, que quase estoura as veias do coração de tanto sentir... Cresceram e envelheceram, uns de cabelos grisalhos, rugas fincadas no canto dos olhos e da boca e dobras no pescoço. Os sobrinhos que crescem numa fração de tempo. Sentir saudade da árvore de natal montada na sala de casa e bolas metálicas e estrelas coloridas e bilhetes pregados. Do sapatinho de crochê que só mães de outrora faziam para cada filho colocar na janela no dia de Natal. Era pequeno o sapato, as mães diziam. Por quê? Porque Papai Noel tem que presentear todas as crianças do mundo. Um presentinho para cada menino. Saudade da música que saía da vitrola e os meninos dançando e pulando no cômodo, pai e mãe mirando amorosamente as peripécias das crias. Sentir falta dos dias chuvosos, com relâmpagos estourando trovões nos ouvidos e a criançada agarrada na barra da saia da mãe. Sentir falta em andar de mãos dadas com os irmãos pela rua em dias de domingo e do cheiro de broa de fubá com canela ou pudim de pão. Dos ralhos e beliscões da mãe e do pai, quando chegava em casa depois da hora. Sentir... Filho que sente falta do pai a acordá-lo cedo para ir à escola e das histórias da avó. Até da imbecilidade e falta de maturidade adolescente. Da crise nervosa das meninas quando chega à primeira regra, como dizem ainda algumas mães. Das horas conversando com colegas de escola sobre o primeiro e gosmento beijo; da festa de quinze anos e febre da onda das debutantes. Será que ainda existem debutantes? Crise de adolescentes, sim. Falta da falta de experiência, do primeiro emprego, da primeira entrevista. Até da primeira transa, primeiro contato com sexo, adolescente, menina ainda: traumatizante, dolorido e às pressas num banco de carro. Uma experiência a mais ou a menos... Sorte ou falta... Não importa, pouco importa. Memoráveis incidentes ou melhor acidentes. Não vem ao caso, catastrófico. Sentir falta de não pensar muito, não querer mais, mais, muito mais e ainda mais... O caminho sem retorno.... Se tivesse... Um chão de cimento grosso para encerar e outra música para ouvir, que não o Réquiem K.626.

Fragmentos

Andréia Donadon Leal

Dia de domingo é enfado enfadante, ou mesmo, redundante. Sem nenhuma inspiração intelectual ou mesmo artística, esbaldar de comida engordativa, neologismos sem neo, não interessa se a palavra ofende os olhos do leitor repleto de academicismo. Esta maldita segunda-feira infernal está com pé quase no dia de descanso. Amanhã, tristemente, segunda-feira, chefe de cara amarrada, autoritário, nervoso, mais calvo e burro com perdão aos animais. Segunda-feira deduz que o chefe é mais desprovido de conhecimentos que você... É mais desprovido de bom-senso, é mais desprovido de humanidade; é mais desprovido de vocabulário, é mais desprovido de idéias, é mais desprovido que todos os seres desprovidos. Será que você é o ser mais desprovido de chefe desprovido? Com os colegas de trabalho, diga: somos desprovidos...

Engole o tédio ácido que corrói lentamente os acordes estridentes vindos da televisão e showzinho patético de dia de domingo: os terríveis e massacrantes programas de auditório. Se bem que dia de semana, a programação muda de roupagem, entretanto não ganha muito conteúdo, talvez mais descarrego de desgraças. Vê a cara de satisfação do repórter ao frisar: diversas pessoas foram assassinadas em chacina! Roubaram, mataram! Não precisa ser pobre para roubar, descobre? Miserável, abandonado a própria sorte e desesperado. Rico e engravatado rouba e rouba descaradamente, inteligentemente. Não fica preso. Se safa, na boa. Quanto mais sangue e escândalos, mais lucros. Tem medo de ligar o aparelho de televisão e se deprimir. Depressão fica sarada com psicanalistas, psicólogos e psiquiatras... Tem medo de chegar perto da janela e tomar uma bala “perdida” propositalmente de alguém que atira bala de chumbo por todos os lados. Tem medo de tudo e de todos, até da sombra.

Com pote de sorvete na mão, os pensamentos voam para além da tela de plasma. Pasmo de aflição não dicionarizada da verborragia inefável de querer dizer nada, fazer nada, sentir nada, tirar o time de campo. Uma expiração, ajuda? Um suspiro enfastiado limpa o pulmão colorido pela fumaça de nicotina. Se bem que parou de fumar há algum tempo: um punhado de meses secos de nicotina. O aroma da comida atraí mais. Entreter a boca com alguma coisa ao invés de soltar ares de poluição.

Os moleques não brincam com a bicicleta na rua. Não sentam no passeio com mais molecada e ficam a toa ou soltam pipas ou jogam bola ou ficam na rua mesmo jogando conversa fora. Estão encarcerados dentro do quarto, com olhos vermelhos de mirar a tela, com dedos teclando com ditos amigos virtuais. Informatização, globalização, flexibilização, on line, automatização, site, telemarketing, etc... Internet-vídeo-celular-tele-pizza-fax-email... Nem um chio, sussurro, miado do gato que ninguém mais olha... De lado, abandonado, depressivo. O cachorro jogado no quintal olhando a lua. Perplexamente, o cachorro olha a lua, talvez converse com ela ou namore-a. Sonha? Quem sabe dizer se cachorro sonha, medita? Mais racional? Mais zem? Na dele, na boa; de namoro com a lua.

Dia de domingo é enfadante? De novo? Se bem que começamos todo dia numa ciranda sem música, ou com música lancinante nos ouvidos. Os ouvidos não têm noventa anos, e é obra de Duchamp. Percebe que faltam algumas horas para o domingo findar e o calendário virar, com nostalgia. Domingo é chato, medita?

Domingo é dia de abandono de pensamentos e ações mecanizadas, voltar para dentro de seu mais íntimo eu. O corpo despejado de qualquer jeito em frente à televisão, os pensamentos ganhando sentimento e o cachorro do lado de fora namorando a lua...

Sonhos

Andreia Donadon Leal

Tive muitos sonhos ousados, imortalizados pela memória como se fossem pequenas pastas de arquivos. Alguns adormeceram na impossibilidade de concretização; hoje fazem parte de um arquivo morto que podem ser consultados ou reestruturados a qualquer momento. Às vezes os tiro do ostracismo para rever valores, erros, desejos, frustrações ou os comparo com os sonhos atuais.

Um dos mais inesquecíveis era a obstinação exacerbada de ser professora. Hoje me pergunto: por que esse sonho me perseguia tanto? Influência de minha mãe ou de meus irmãos? Influência de alguém? Ou influência minha? Por que era tão importante? Simplesmente pela razão de ter um dos papéis mais nobres e importantes em uma sociedade. Sim, queria ser professora e era vontade minha! Ser como os respeitados mestres nos tempos áureos de escola primária, de magistério, de universidade e de pós-graduação. Tive bons mestres, uns geniais e alguns nem tanto...

Voltando aos sonhos; sonhei em ser mãe e não fui. Sonhei em ser professora e fui por um tempo ínfimo. Sonhei em me casar e passar o resto dos dias criando filhos, se os tivesse; cuidando da casa, do marido e um trabalho de meio expediente. Tive uma casa sem filhos, um casamento feliz e não moro na cidade de onde vivi a maior parte da minha existência. Um de meus mais ousados, digo ousado, pois para os padrões financeiros de uma moça do interior de família pobre, como muitos diziam e dizem até hoje, era dar o passo maior que as pernas: fazer um curso superior em outra cidade. Sonho distante. Sonhei incontáveis vezes dormindo... Sonhei acordada sentada na varanda da casa de meus pais no interior de Minas: chegar ao céu e contemplar as estrelas lá de cima também. Uma paixão indescritível pelo céu fazia parte de meus devaneios e momentos de relaxamento. Olhar, contar as estrelas e ver outra luz flutuar vagarosamente na imensidão do espaço estelar. Sonhos são impalpáveis, nunca deixam de ser sonhos; alguns mágicos, outros mais reais, mas difíceis de se concretizarem e nunca perdem seu encantamento, quando são almejados pelo coração.

Sonhar sonhos ousados ou simples. Sonhar sonhos que povoam as ideias dos seres humanos que lutam com dignidade, perseverança e esforço para concretizá-los. Sonhar sonhos que se tornam ou não em realidade, sem desistir ou se deprimir. Sonhar sonhos sem ultrapassar horizontes ou o caminho do próximo... Sonhar sonhos que nos colocam no lugar onde as mãos e os pés podem alcançar, sem nos tolher de subir mais um degrau ou dar mais um passo, sem esticar demais as pernas ou ultrapassar em alta velocidade ou invadir o caminho de outrem. Sonhar sonhos e saber que cada dia eles poderão ser reestruturados ou arquivados. Sonhos não envelhecem e sempre devem fazer parte de nossos pensamentos, ações e metas de vida. Sonhar sonhos e nunca deixar de sonhá-los.